A leitura das três cartas endereçadas a D. Luís da Cunha (não confundir com o diplomata homónimo D. Luís da Cunha, 1662-1749) permite-nos verificar que as intervenções do general Francisco Xavier da Veiga Cabral (da Câmara, 1710-1761) e seu filho, o capitão Francisco António da Veiga Cabral da Câmara (Pimentel, 1733-1810; posteriormente, 80.º governador da Índia, 1794-1807, e 1.º visconde de Mirandela, 1810), relatadas na Relação Verdadeira da Espantosa Fera, correspondem à realidade. Também nos permite concluir que de facto se registou um número indeterminado, mas significativo, de vítimas.
São estes, no entanto, os únicos factos coincidentes em todos os relatos.
Os números relativos às forças militares envolvidas diferem nas três fontes - sessenta cavalos e duzentos infantes na Relação Verdadeira da Espantosa Fera; cem cavalos e duzentos infantes na primeira carta do general Francisco Xavier da Veiga Cabral; quinze oficiais e duzentos soldados na carta do vedor Marcelino Leitão de Carvalho.
Do mesmo modo, a contabilização das vítimas apresenta números díspares - "arbitra-se o numero das mortes a mais de cem" (Relação Verdadeira da Espantosa Fera); "de cem presas, dizem, há-de passar a destruição" (Nova, e Verdadeira Relaçam); "matando, e devorando perto de trinta, ou mais pessoas de ambos os sexos" (carta do general Veiga, datada de 12 de Maio de 1760); "por ter comido alguas crianças" (carta do vedor Marcelino Leitão, data de 13 de Setembro de 1760).
Também o resultado das diligências difere. Enquanto a Relação Verdadeira da Espantosa Fera declara a morte de um monstro, de que se faz uma descrição na Nova, e Verdadeira Relaçam, na carta do general Veiga declara-se apenas a morte de uma loba e a fuga do seu companheiro, um lobo monstruoso, que posteriormente terá aparecido na Galiza.
Já na carta do vedor, claramente marcada por um tom crítico e irónico sobre as decisões do general Veiga, se refere que apareceu em Chaves um clérigo a reclamar a morte do animal, conseguida unicamente com duas balas, embora este apenas apresentasse como prova da façanha uma pele seca de lobo...
De todo estes relatos se conclui, portanto, que as populações das cercanias de Chaves foram efectivamente atemorizadas, durante alguns meses do ano de 1760, por acontecimentos inusitados provocados por um animal feroz e invulgar. Fosse ele lobo, loba ou monstro...
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"(...) Junta dos Tres Estados; eu depois que vim para esta Provincia, emtrey na deligencia de cobrár alguas dividas, que havia muitos annos se devião a Sua Magestade; e vou continuando na mesma deligencia.
A Illustríssima e Excelentíssima Pessoa de Vossa Excelência guarde Deos muitos annos.
Chaves 13 de Setembro de 1760
A Vossa Excelência
Beija (?) os pes (?) Seu maiz omilde Criádo
Marcellino Leytao de Carvalho"
(Arquivo Histórico Militar, 1.ª div., 6.ª sec., cx. 12, n.º 6)
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"(...) que lhe custou a defender-se, o qual o acabou com a coronha da espingarda, não era tão feyo como o pintávão; era Lobo, e não outro bicho, como o vulgo desia; se for o mesmo cessarão as montarias, e as despesas dellas.
Á tempos dei a Vossa Excelência conta de como tinha achádo esta Vedoria, com a qual remetti hua rellação dos Pagadores, e Almocreves, que á perto de 60 anos tem servido, sem que se tenha tomado contas á mayor parte delles; o mesmo fis pella (...)"
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"(...) Tam bem dou conta a Vossa Excelência da obra que mandou fazer o mesmo governador das Armas nas barbacáns da muralha da Praça de Bragança de que remeto a certidão da medição que nellas fés o Cappitam Emgenheiro Manoel de Almeida, que é o unico nesta Província; e da sua importancia, da qual obra dey conta a Sua Magestade; pella Junta dos Tres Estados com os apontamentos della, em primeiro de Junho deste prezente ano; como também a dou a Vossa Excelência de que o mesmo governador das Armas mandou dispender setenta e dous mil reis com quinze almocreves que com as suas mayores forão conduzindo a bagagem de outros tantos Officiais que com duzentos soldados mandou fazer montaria a hum lobo que andáva no destrito desta Praça, e da de Monforte, por ter comido alguas crianças que acháva nos campos, o que fazia tal vés apertado da fome, mas com tanto estrondo senão fés nada, e Sua Magestade pagou as custas. O qual a somana passáda o matou hum clerigo com duas bállas, e afirma ser o mesmo; aquy trouse antes de hontem a pélle, sem embargo de estar seca, náo lhe faltáva corpo bastante, muito bem armado de dentes, e ainda depois de ferido, dis o mesmo clerigo o cometera (...)"
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"Ilustríssimo e Excelentíssimo Senhor D. Luis da Cunha
A Somana passáda dei conta a Vossa Excelência por hum proprio de se achar arrematádo o assento desta Província a Francisco António da Costa e José de Sá Vargas, não muito á minha satisfação, mas como esta deligencia foy encarregada ao Governador das Armas, não pude serlhe bom com a condição dos vinte quatro contos, que se lhe mandão adiantar. Não faltarião Lançadores, e tál vés por menos preços. (...)"
© Capas & Companhia
"(...) oito segundo se me affirmava dos quáes se prenderão cinco, e os tres se havião passado a Galiza antes que chegase o destacamento.
Vossa Excelência, parecendo-lhe, fará presente a Sua Magestade o que lhe exponho.
A Ilustríssima e Excelentíssima Pessoa de Vossa Excelência guarde Deus muitos anos. Bragança a 9 de Junho de 1760.
Ilustríssimo e Excelentíssimo Senhor D. Luis da Cunha
Francisco Xavier da Veiga Cabral"
(Arquivo Histórico Militar, 1.ª div., 6.ª sec., cx. 8, n.º 2)
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"(...) depois de receber onze tiros emprehendeo romper o mesmo cordão: foi remetida á minha prezença; tinha quatro palmos de alta, mais de sete e meyo de comprida, com hua grosura tão extrahordinaria, que se fazia incrivel em animal de semilhante espécie: do referido Lobo só há noticia de se haver visto em Galiza; e quando torne a aparecer nesta Provincia, para a sua extinsão se disporá nova deligencia.
Dandoceme parte de que em o Destrito da Praça de Chaves, e em o da Vila de Monforte se conservava hua quadrilha de Ladroens mascarados, e facinerózos, sem que as recomendaçoens que eu havia feito ao Governador da mesma Praça o agitasem para o remedio, ordenei a meu filho Francisco António da Veiga Cabral da Camara, que em o proprio tempo que nas montarias se proseguise, se fizese quanto coubese no possivel, para que os expressados Ladroens se prendesem, seráo (...)"
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"Ilustríssimo e Excelentíssimo Senhor
Não rezultou das montarias todo o effeito que eu dezejava; por que a rama dos bosques carregada com copioza chuva servia de insuperavel obstaculo aos exploradores: estes só matarão hua Loba que era quasi inseparavel companheira do Lobo que em primeiro lugar se procurava: constandome, que no investir, e devorar havia entre ambos tam pouca diferença que muitas vezes se reputavão indistintos: o tal Lobo pouco antes de fecharse o cordão, penetrava pelas ordenanças; e a propria Loba ainda, (...)"
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"(...) povos lhe chega brevemente o tempo de sahirem aos campos para recolherem os frutos, sem os quaes hão de perecer as suas familias reduzidas a lamentaveis mizerias; porque sem se lhe extinguir a cauza do medo, senão hão de rezolver a sahirem dispersos para os mesmos campos: Ordenei, que em o dia 16 do corrente marchasem com duzentos infantes o Coronel de Infantaria Francisco Luis Piqueno Chaves, e com cem cavalos meu filho o Capitam de Cavalaria Francisco António da Veiga Cabral da Camara, para que incorporadas aquelas numerosas Companhias das Ordenanças com estas tropas pagas sejão militarmente executadas as diréçoens com que procuro o remedio por que os referidos póvos justamente estão clamando.
Vossa Excelência, parecendo-lhe, se sirva pôr na Real Noticia de Sua Magestade o que fica expressado, ou para proseguir nas providencias quando se fação precizas; ou para me abster de continuálas.
A Ilustríssima e Excelentíssima Pessoa de Vossa Excelência guarde Deus muitos anos. Bragança, 12 de Mayo de 1760.
Ilustríssimo e Excelentíssimo Senhor D. Luis da Cunha
Francisco Xavier da Veiga Cabral"
(Arquivo Histórico Militar, 1.ª div., 6.ª sec., cx. 8, n.º 2)
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Os dois relatos anteriormente transcritos parecem percursores paradigmáticos da literatura fantástica cultivada por diversos autores consagrados, particularmente nos séculos XIX e XX.
Apesar de não remeterem para monstros com aspecto antropomórfico, evocam, no entanto, vários relatos fantásticos que surgiram ainda na Idade Média, como aquele que se apresenta no Nobiliário do Conde D. Pedro (c. 1287-1354), sobre a origem do apelido Marinho, ou o relato de Damião de Góis (1502-1574), no texto Urbis Olisiponis Descriptio (1554), sobre os tritões de Sintra.
Acontece, contudo, que muitos dos aspectos narrados nestes dois relatos são corroborados por correspondência da época, entretanto descoberta pelo autor deste blog no Arquivo Histórico Militar, em Lisboa.
Essa correspondência, constituída por três cartas remetidas de Trás-os-Montes para Lisboa, entre os meses de Maio e Setembro de 1760, serviu provavelmente de base aos dois opúsculos publicados pela oficina de José Filipe, pelo que se justifica a sua transcrição integral.
"Ilustríssimo e Excelentíssimo Senhor
Constando-me que em varios póvos desta Provincia, e principalmente em muitos dos comprehendidos nos destritos da Praça de Chaves, e Vila de Monforte de Rio Livre, hum lobo ( que o vulgo com diferença denomina ) havia feito consideravel damno matando, e devorando perto de trinta, ou mais pessoas de ambos os sexos; e que principiando pelas de menor idade, já se lança aos hómens pondo-os em tal consternação, que sem serem juntos, e armados são poucos os que se atrevem a sair dos mesmos povos, privando-os o temor de solicitarem o que lhes É precizo, para sustento das vidas, e conservação das fazendas: dispus, que com as companhias das Ordenanças dos proprios destritos se repetissem as Montarias instruhindo-as no methodo mais adquado a se livrarem de hum mal tão manifesto; e ou pela desordem, e confuzão que em as taes ordenanças são quasi inivitaveis, ou porque a extenção dos terrenos; o alcantilado dos montes; e a densidade dos matos, não só necessitão de mayor numero de gente, que saiba apontar as armas; perceber o que se lhe explicar; e que não ignore a obrigação que tem de obedecer, não produzirão effeito as deligencias, em que até o presente se tem continuádo: e attendendo eu a se me reprezentar, que aos Moradores dos mencionados (...)"
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